A filósofa e ativista social estadunidense Angela Davis cunhou, em seu livro “Mulheres, raça e classe” de 1981, uma afirmação cuja potência ecoa firmemente no século XXI, em meio a (ainda) presentes casos na sociedade brasileira e mundial: o racismo. Ao afirmar que “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”, Davis nos convoca a pensar estratégias de combate que nos forcem a sair do lugar de comodismo e, de fato, busquem mudanças efetivamente reais em modelos de conduta, formas de pensar e agir que ainda, no mundo contemporâneo, reforçam a presença dessa vil e perversa ação que, via de regra, se manifesta de forma estrutural na sociedade, tais como afirmam cientistas sociais importantes, como Kabenguele Munanga e Silvio Almeida.
No entanto, essa tarefa não é fácil. O processo histórico de colonização europeia sobre os demais continentes, em especial o africano, deixa marcas difíceis de cicatrizar. Fantz Fanon, filósofo e psiquiatra martinicano, em seu livro “Peles Negras, Máscaras Brancas”, de 1983, nos descreve, da forma mais visceral e explícita, essa ferida. Fanon afirma que a agressão dos processos de colonização e do racismo impõe, de forma sistemática e cotidiana, violências que vão além do processo físico e excludente econômico. Elas infiltram-se na própria constituição ocidental da identidade negra, que gera, como consequência, um processo, ora de desumanização de uma identificação étnica, ora de uma frequente crença psicológica (e perversamente construída) de que é preciso embranquecer para estar inserido num mundo estruturalmente racista. Tal movimento foi sendo enraizado, no mundo, pelas teorias do racismo científico do século XIX e, no Brasil, pela crença outrora criada pelos seguidores do pensamento supracitado de que o país era “atrasado por ser miscigenado”. Estes debates foram construídos por precursores de um pensamento social sobre o Brasil, no século XIX, como Francisco Oliveira Viana e Raimundo Nyna Rodrigues, posteriormente criticado e, pelo menos nas teorias socioantropológicas, superado.
Se concordamos com Kabenguele Munanga e Silvio Almeida, qual seja, o racismo existe e é (infelizmente) estruturante na sociedade ocidental, precisamos validar o legado histórico do movimento negro, em prol, não apenas do combate ao racismo, mas principalmente de uma pedagogia antirracista. Tal pedagogia busca decolonizar o pensamento, ou seja, permitir a construção do conhecimento a partir, também, de experiências e narrativas constitutivas do “sul geopolítico”, ou sobre o olhar do subalternizado, por meio de um reconhecimento da autenticidade cultural e acadêmica dos povos historicamente colocados como subalternos, e, principalmente, proporcionar uma proposta emancipatória, a fim de estabelecer, de fato, uma construção de sujeito social que compreenda e valorize a identidade negra e, também, de povos originários, em seus aspectos éticos, estéticos, sociais e econômicos, reconhecendo não apenas os violentos processos de exclusão, mas também seus símbolos, personagens, marcas, lugares e narrativas. O Brasil deu um importante passo na construção do pensamento antirracista ao instituir a lei 10.639/2003, que torna obrigatório às Escolas o ensino da cultura e história africana e afro-brasileira, ampliando o espectro de identidades à lei 11.645/2008, agregando a história e cultura dos povos originários indígenas brasileiros.
Ainda há muito o que avançar. Por isso Angela Davis e sua convocação a ser antirracista é fundamental ao século XXI. A escola é o ambiente em que é possibilitado o convívio e a aprendizagem das regras sociais, é onde “a lente que permite ver o mundo”, ou cultura, tal como Ruth Benedict conceitua de forma magistral, pode proporcionar diferentes graus de lentes e formas de entender a realidade e, assim, reivindicar a necessária mudança estrutural pela qual a sociedade brasileira e o mundo precisam passar. Para tal empreendimento, professores são fundamentais nesse diálogo.
Nosso fundador, São Marcelino Champagnat, ao acolher o menino Montagne – ponto de partida para construir uma Escola que acolhesse, sem distinção, os jovens – já estabeleceu, como premissa primordial do projeto pedagógico marista, o amor, o cuidado e a necessidade de acolher todos os jovens ávidos por conhecimento. No entanto, para concreta efetivação, precisamos também repensar a forma de ensino e adentrar na pedagogia decolonial, não apenas na teoria, mas fundamentalmente na prática. Sem dúvida alguma, a Escola, como instituição social e importante construtora de identidade e cidadania, é ferramenta primordial para que esse movimento, de fato, ocorra. Ou seja, não basta à Escola não ser racista. Ela precisa, efetivamente, ser antirracista.
Referências:
- ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Jandaíra – Coleção Feminismo Plurais (Selo Sueli Carneiro), 2020.
- BENEDICT, Ruth. O Crisântemo e a Espada. São Paulo: Perspectiva, 1972.
- DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
- FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
- MUNANGA, Kabenguele. Negritude: usos e sentidos: Belo Horizonte: Autêntica, 2020.